A PEC 10/2022 estabelece “condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados”. Na prática, a iniciativa privada poderia coletar e processar o plasma humano, o que foi proibido pela Constituição de 1988, que vedou a comercialização do sangue e seus derivados para obtenção de lucro.
Se aprovada, a proposta vai reduzir os poderes da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), criada em 2004, e a única gestora do plasma excedente do uso em transfusões no Brasil. Atualmente, a empresa mantém estoque do insumo para a fabricação de medicamentos hemoderivados.
Esses medicamentos são produzidos a partir do plasma humano obtido nas doações de sangue realizadas nos hemocentros brasileiros. Com esse plasma, a Hemobrás consegue fabricar produtos como: albumina, imunoglobulina e os fatores VIII e IX da coagulação. Os suplementos são usados por pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) para o tratamento de hemofilias, doenças autoimunes, pessoas com Aids e outras deficiências imunológicas ou infecciosas.
“Quando você diz que essa atividade [de manipulação do sangue humano e derivados] pode ser explorada pela indústria, e isso seria regulamentado depois, é preocupante. Os legisladores contrários levantam que, de fato, se a gente está trabalhando com a discussão da venda de plasma, depois podemos avançar para discussões sobre transplantes”, explica Antônio Edson Lucena, presidente da Hemobrás.
Em 2020, um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) questionou o Ministério da Saúde sobre o problema causado pelo desperdício de bolsas de plasma no Brasil. Segundo auditoria do órgão, entre 2017 e 2020, foram perdidos 597.975 litros de plasma, o que equivale ao material coletado em 2,7 milhões de doações de sangue. O relatório foi usado como justificativa para a aprovação da PEC no Senado.
O presidente da estatal, no entanto, rebateu os dados e disse que o relatório está ultrapassado. "Hoje, o Brasil tem 3,5 milhões de bolsas de sangue ao ano. Isso nos dá 700 mil litros de plasma. Fracionando todo o plasma brasileiro, teria como suprir todo o mercado nacional. Mas por que falta plasma? Porque a estrutura é fundamental. O que está na mesa é que o sistema não tem financiamento há muitos anos", explicou.
“Os hemocentros trabalham com a doação altruísta e, se algumas empresas passassem a coletar o plasma, poderia haver uma perda na qualidade e também acontecer o que existe hoje nos Estados Unidos, onde a doação é remunerada e há pessoas que chegam a doar três vezes por semana, no que eles mesmos discutem e chamam de extrativismo humano. Nossa preocupação é que o Brasil se transforme nisso, em apenas um local de captação do plasma", completou.
A Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) também divulgou posicionamento sobre a PEC. A associação aprova a participação da iniciativa privada na comercialização e fracionamento industrial do plasma excedente, mas diz que é contra a doação remunerada.
"Entendemos que o excedente atual de plasma proveniente de doação voluntária de sangue não é devidamente aproveitado, corroborando para a não liberação desta prática no Brasil", diz a nota da entidade.
Interlocutores do governo se preparam para barrar a proposta no Congresso. Ao R7, o Ministério da Saúde diz que acompanha o tema e defendeu a Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados. "Ao todo, são 27 hemocentros regionais, conhecidos como bancos de sangue públicos, com absoluto controle de qualidade e que prestam serviço de forma integral e gratuita à população", informou.
Senadores divergem sobre o tema
Relatora do projeto, a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), chegou a ser favorável à matéria. No entanto, encontrou oposição de outros senadores."Esse tema não é simples. O plasma é um derivado do sangue, não é uma coisa caída do céu. Termos comercialização de plasma é termos comercialização de sangue", afirmou o senador Humberto Costa (PT-CE).
O senador Omar Aziz (PSD-AM) antecipou o voto e disse que será contra a PEC. "Sabemos que já tem tráfico de órgãos no Brasil. Depois que for vender sangue, como vamos controlar isso? Aqui, se sequestra para tirar os órgãos das pessoas, tirar sangue é muito mais fácil. Essa é uma discussão que não tem de partir de pessoas leigas. Somos leigos. É perda de tempo fazer audiência. A gente vai negociar agora sangue? Quanto é o metro cúbico do sangue?", questionou.
Para o senador Ciro Nogueira (PP-PI), o tema é "muito importante para a saúde do nosso país". "Temos que dar total prioridade para a realização da audiência pública e, logo depois, para a votação da matéria", afirmou.
O senador Sergio Moro (União-PR) também defendeu agilidade na análise do texto e disse ser a favor da aprovação da PEC. "Há uma deficiência notória no Brasil em relação a esse mercado de derivados. Pessoas infelizmente morrem por conta disso. Temos uma estatal ineficiente, a Hemobrás, e precisamos flexibilizar. Ninguém quer prejudicar o que já existe. Mas, se as pessoas estão precisando desses produtos e derivados, há uma questão de urgência."
A audiência pública sobre o tema na CCJ, — com cinco convidados favoráveis e cinco contrários à PEC —, ainda não foi marcada. Os senadores estão em fase de definir quem serão os nomes dos participantes.